CONTO
Este ano não foi igual
Mesmo vestido numa bela, colorida e hilariante fantasia de palhaço, Felisberto era nitidamente o folião mais triste do carnaval. Vagava desanimado pelas ruas da cidade. No bolso trazia alguns confetes e bem guardadas serpentinas.
Felisberto convidara os velhos amigos de outros carnavais para descerem à cidade com ele e assistirem aos blocos, cordões improvisados, desfiles de fantasias e bailes com orquestra nos palanques espalhados na Avenida Central. Os companheiros declinaram, alertando que os tempos e os carnavais estavam mudados. Mas Felisberto, impulsionado por uma súbita e desenfreada saudade da juventude, queria conferir o tão propagado novo carnaval de rua atual. Resoluto, desceu a serra.
Passeando pelo centro da Cidade, tentava distinguir algum bloco. Infelizmente não via passar nenhum grupo que pudesse ser identificado como autêntico cordão de carnaval. Ao contrário, reparou aglomerados de gente desorganizada berrando e pulando um tipo de som estranho e estridente que ele não conseguiu identificar como música. Aquilo não passava de barulheira enervante, repetitiva, repleta de palavras chulas e de mau gosto. Afastou-se e caminhou por ruas paralelas pretendendo encontrar algo mais animado.
Chegando à velha Lapa, resolveu beber uma cerveja e achou barracas desorganizadas com comidas expostas sem a mínima higiene. Após ultrapassar um sem número de restaurantes sofisticados, enfim encontrou o boteco do qual fora freguês tempos atrás. Este também já não era o pé-sujo de outrora. Pediu uma cerveja e sentou-se de frente para a rua, observando o exterior. Horrendos carros de som produziam um barulho infernal e os novos foliões não dançavam coordenadamente, pulavam e gritavam descontrolados, já que o ritmo tocado não permitia sequer acompanhamento vocal. Veio-lhe à memória algumas marchinhas hilárias do seu tempo, mas logo ao iniciar “Mamãe eu quero...”, outra zoeira invadiu o recinto. Outro imenso e feio carro de som passava executando um tal de “bate-estaca” ensurdecedor. Sem encontrar nenhuma referência aos carnavais antigos, conclui que este ano não foi igual àqueles que passaram. Não viu mais de mil palhaços no salão. Não havia ninguém sassaricando. Nenhum pierrô apaixonado que vivia só cantando. A jardineira devia estar ainda mais triste. Não abriu a janela a formosa mulher. O general da banda não chegou. A estrela Dalva não despontou no céu. A fonte secou. Oi, zum, zum, zum, tá faltando muita coisa. Hoje o carnaval é de segunda, é um estridente bafafá. Muda e fica por baixo. Mas não mexe que fede! Bagunçaram o seu coreto. O céu não está na terra. O boi tá... tá mais não. Simpatia é quase horror. Ninguém sorri pra ele. Largou do copo. Sentiu-se um cachorro cansado. Uma rola preguiçosa. Meu bem, não volto tão cedo. Voltar pra quê? Pra ver que merda é essa que nem pega pra sambar? Percebeu que a festa atual não lhe empolga hora nenhuma. A Lapa não voltou a ser a Lapa, não confirmou a tradição.
Triste foi reconhecer que quem faz o carnaval hoje não é mais o povão que praticamente criou e manteve a festa de rua em suas características até quanto pode. Foi o poder público politiqueiro e oportunista, mancomunado com a gananciosa indústria predatória do turismo, da hotelaria, da gastronomia, do alcoolismo escancarado, do interesseiro mercado fonográfico e midiático excessivamente comercial que ludibriou as novas gerações que não atinaram para o empobrecimento cultural imposto pelo mau gosto e a baixa qualidade, muito útil à tal indústria cultural. A lamentável consequência disso, ponderou, foi que esses jovens perderam a noção do que representou este valioso patrimônio. Saudoso, Felisberto lembrou que, quando a invasão alienígena começara, ele fora um dos primeiros a criticar e alertar que tal descaracterização redundaria num verdadeiro estrago na cultura popular e carnavalesca carioca. Porém muitos dos seus amigos, posando de “antenados” e “moderninhos”, defenderam a tal pluralidade não cabível neste caso sobremodo específico. Acolheram e até incentivaram essa transformação execrável receando serem tachados de ultrapassados ou “caretas”. Com medo de se afastarem demasiadamente da juventude já perdida e da “onda jovem”, aceitaram covardemente a invasão destruidora de ritmos e composições que não passam de pobres cópias canhestras do que de pior vem do estrangeiro. Tantas vezes enfatizara, em vão, que o carnaval ocorre efetivamente em quatro dias apenas e nesses poucos quatro dias o povo cantava e dançava ao som das deliciosas marchinhas, marchas-rancho, sambas e frevos. O restante do ano era reservado para outros tipos de música. O mais agravante foi que, após um tempo de louvável resgate, alguns blocos, caíram ingenuamente na mesma armadilha feita contra as escolas de samba, se associando às emissoras de televisão, aos patrocinadores poderosos e ao poder público. Assim a descaracterização foi completada com a criação estúpida de um “blocódromo”, passarela para blocos de rua com camarotes luxuosos e arquibancadas, onde são cobrados ingressos caríssimos, inacessíveis a grande maioria foliã da população.
Coitado. Felisberto não viu, naqueles dias, nenhuma fantasia significativa que lembrasse o carnaval do seu tempo. Nem ao menos um solitário bate-bola, uma boneca de pano, uma nega maluca, um pierrô, um arlequim ou uma colombina. Sentiu-se alijado daquela festa que não era para um belo e colorido palhaço perdido no meio do exotismo de coisas como Avatar, Barbie, Bob Esponja, Spider Girl, X-Man, Juspion, Flash, Ajax, Captain America, Lex Luthor, Silver Sufer, Extroyer Verme, dentre outros personagens horrendos de tal festa de Halloween, de Liga da Justiça e demais super-heróis importados.
Impulsionado pela raiva por ter sido excluído do tão amado carnaval, de súbito, pagou a conta e saiu apressado, evitando passar por locais onde havia aglomeração. Ô, abre alas que eu quero passar! Andou desnorteado até alcançar o bairro da Glória, onde desabou num banco para descansar. Sentiu então volumes nos bolsos e lembrou que sequer tocara nos confetes e serpentinas que trouxera para atirar sobre os foliões. Vendo as peças nas mãos, chamou-lhe a atenção detalhes que não observara na hora da compra. Confeccionados em papel de má qualidade, não tinham cores vívidas. Vasculhou o pacote e percebeu que as mercadorias possuíam cores adulteradas. O azul sobremodo arroxeado, o verde e o vermelho muito escurecidos, além de um feioso cinza desbotado. Viu que o saco de confetes também continha cores enfeadas semelhantes. Nada de cores bonitas e vistosas, originais de verde, vermelho, azul ou amarelo. O confete não poderia mais ser um pedacinho colorido de saudade, já que nem cor definida possuía. Inexoravelmente aquele seu belo, colorido e divertido carnaval havia se acabado. Recordar é viver, mas quem parte leva saudade. E o seu carnaval partiu, saudade deixou. Foi uma chama que o sopro do passado desfez. Agora é cinza, tudo acabado e nada mais. Queria chorar, mas não tinha lágrimas. Vem chegando a madrugada, o sereno vem caindo. Triste madrugada foi aquela, quando ouviu o último clarim tocar. Sentiu-se um pequenino grão de areia. Falou mais alto no seu peito uma saudade. Quase rasgou a fantasia. Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão. Tristeza, por favor, vai embora. Pensou ainda em ir para alguns bairros suburbanos onde o carnaval jamais acabara. Onde existia ao menos os animados grupos de clóvis ou bate-bolas. Mas além de decepcionado, se sentia cansado. Bandeira branca. Não posso mais.
A passos largos, Felisberto alcançou no hotelzinho onde se hospedara. Entrou rapidamente sem olhar nem falar com ninguém. Subiu as escadas de dois em dois degraus e se trancou no quarto, batendo a porta. Desfez-se da fantasia, recolheu roupas e objetos, socando tudo a esmo na mochila. Jogou na lixeira os pacotes de conferes e serpentinas. Desceu apressado e pagou a conta. Logo na porta, avistou um táxi. Agitado, fez sinal. Mal o carro parou, entrou anunciando de imediato: “Por favor, direto para a rodoviária”.
Decidiu definitivamente nunca mais sair de Visconde de Mauá nos dias de carnaval.
Passarinho só, quetinho, quietinho...
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